Superposição de regras fiscais burladas infantiliza contas públicas

Distribuir perdas e ganhos em uma sociedade tão desigual como a brasileira requer esforço democrático de eleição de prioridades. Obviamente, para que as escolhas sejam legítimas, é preciso um devido processo intertemporal de concepção sobre o tamanho do Estado e de equalização da sua relação com a sociedade e o mercado.

As regras do jogo orçamentário aqui importam tanto quanto o próprio resultado final do processo. A existência de limites mínimos e máximos, por exemplo, indica uma ordenação constitucional e legal de prioridades que, por seu turno, definem os contornos da própria razão de ser do Estado. Basicamente e muito grosso modo, podemos dizer que quatro grandes pilares sustentam o edifício normativo das nossas contas públicas:

  • saúde e educação são atividades-fim essenciais que não podem ser aviltadas com gastos aquém dos seus respectivos pisos constitucionais;
  • gastos com pessoal e dívida não são fins em si mesmos e precisam ser limitados em proporção da receita corrente líquida;
  • despesas correntes não podem ser cobertas por receitas de capital;
  • repasses federativos e autonomia financeira dos poderes são garantias de descentralização efetiva da cadeia de comando decisório, bem como garantem que haja freios e contrapesos incidentes sobre ela.

A despeito de vigerem há décadas, tais pilares não se mostraram suficientes para conter as pressões de alguns poucos por ganhos ilegítimos ao custo da socialização dos prejuízos para o conjunto da sociedade. A opacidade das escolhas inconstitucionais e ilegais foi assegurada pela superposição de normas fiscais que adiavam o enfrentamento dos conflitos distributivos, ao custo do descontrolado endividamento público e da má qualidade das políticas públicas.

Contra toda regra fiscal relevante, exceções e burlas inúmeras foram apresentadas, ao que vieram, em seu reforço, novas regras fiscais de reafirmação e acirramento dos controles anteriormente vigentes. Quanto mais dura a regra, mais brechas lhe foram contrapostas no sentido de quebrar sua essência, prometendo cinicamente seu cumprimento… Infelizmente uma lógica perniciosa de aposta contra o ordenamento vigente.

Assim, o descontrole com despesas de pessoal, por exemplo, foi tratado no Decreto-lei 200/1967, na Emenda 19/1998, na Lei de Responsabilidade Fiscal, na Emenda 95/2016 e nas diversas tentativas de repactuação federativa com os estados em situação de verdadeiro caos fiscal. A repetição das regras soa como fracasso mal assumido ou deliberadamente opera como engodo histórico.

Mesmo caminho errático de sucessivas normas, aliás, pode ser antevisto na trajetória histórica das regras relativas aos precatórios, às emendas parlamentares impositivas, à desvinculação de receitas da União e à criação desordenada de municípios, dentre outras tantas escolhas fiscais iníquas…

Somos profícuos em exemplos de hipocrisia institucional: a força republicana da regra quase nunca consegue se afirmar no longo prazo e universalmente, porque as exceções são fonte inesgotável de fisiologismo fiscal. As renúncias de receitas e os créditos subsidiados, nesse sentido, são expressão culminante do fluxo patrimonialista de exceções.

O único legado positivo dos últimos cinco anos de empobrecimento econômico em valores per capita reside no fato de que a constatação da escassez se tornou menos suscetível de ser adiada ou falseada na gestão cotidiana dos recursos públicos.

Com a ruptura da regra de ouro formalmente autorizada pelo Congresso na semana passada, talvez o aprendizado mais importante para o país (ainda a ser conquistado e definitivamente enraizado) seja superar a infantilização das contas públicas. Precisamos democraticamente assumir a fronteira da restrição fiscal e afirmar a impossibilidade fática de dar tudo para todos agora.

Assim como é preciso — de fato — reformar a Previdência para absorver a transição demográfica (expectativa de sobrevida maior) e a transformação do mercado de trabalho (informalidade e automação), a sociedade brasileira precisa ser confrontada com a necessidade de rever alguns outros inadiáveis impasses estruturais na gestão dos recursos públicos:

  • falta de ganho de escala para a gestão de serviços públicos em municípios com menos de 5 mil habitantes, os quais perfazem quase 1/3 do total;
  • necessidade de revisão do teto global com despesas primárias, dado pela Emenda 95/2016, a pretexto de “Novo Regime Fiscal”, para repensar despesas, dentre outras hipóteses, como o censo demográfico e investimentos/inversões financeiras;
  • ausência de relação programática entre Executivo e Legislativo e paroxismo da resposta individual buscada por meio da judicialização das políticas públicas, dada a falta de aderência do executado ao planejado;
  • incapacidade de aferir produtividade mínima e avaliar desempenho satisfatório do quadro de pessoal na administração pública, seja ele próprio ou terceirizado, o que implica ociosidade e ineficiência na principal despesa corrente de todos os entes da federação;
  • falta de balizas mínimas, em termos de custos e riscos fiscais, para a gestão das despesas financeiras assumidas em prol da constitucionalmente circunscrita liberdade decisória das políticas monetária, cambial e creditícia a cargo do Banco Central (como debatemos em “É inconstitucional a omissão em limitar a dívida pública federal”, “Escolha sobre custos e riscos das reservas cambiais escapa ao Direito?”, “LDO deve estimar riscos fiscais da relação entre Tesouro e Banco Central” e “Precisamos debater os custos e riscos do regime jurídico do Banco Central”;
  • caráter ilimitado e descontrolado das renúncias fiscais.

O rol acima não é exaustivo, tampouco se pretende definitivo. Apenas busca lançar um horizonte prospectivo de reflexão, quiçá tão somente a título de convite ao diálogo. Diferentemente do que sempre alegaram e alegam nossos governantes de ocasião, remedos e remendos normativos não fortalecem nosso arcabouço de proteção das finanças públicas.

A superposição de regras de contenção aos abusos e às exceções nas contas públicas brasileiras, ao longo das últimas décadas, apenas evidencia o quanto aquelas são reiterada e cronicamente burladas.

Somente avançaremos se enfrentarmos a histórica infantilização das contas públicas. Para tanto é preciso, desde já e cada vez mais, uma radical transparência quanto às escolhas orçamentárias sobre quem ganha e perde com a ação estatal daí decorrente, à luz do inafastável compromisso constitucional de máxima eficácia dos direitos fundamentais.

Fonte: Conjur.

Autora: Élida Graziane Pinto.